“O artista não sabe que o mundo existe fora da ar­te; por isso atreve-se a criar.”

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Análise do livro A rosa do povo por Márcia Lígia Guidin



Cinquenta e cinco poemas compõem a obra "A Rosa do Povo", que foi escrita por Carlos Drummond de Andrade entre os anos de 1943 e 1945. É o mais longo de seus livros de poemas.

O próprio título do poema já traz uma simbologia: uma rosa nasce para o povo, será a poesia para o coletivo? Para tentar saber, vale a pena ler o poema "A flor e a náusea".


Nessa época, o mundo vivia os horrores da
Segunda Guerra Mundial, e Drummond, que nunca fora alheio a questões ideológicas ou humanas, aos sofrimentos ou à dor na cidade ou no campo, escreveu nesse livro (ao lado de outros diversos temas) sua indignação e tristeza melancólica com o mundo, com a violência e com a necessidade de se ter uma ideologia.

Política e poesia

 

Por isso, os estudiosos dizem que este talvez seja o livro mais "politizado" do poema mineiro. Essa obra, na verdade, funde as ideias sociais que estão em outros dois livros ("José" e "Sentimento do Mundo"). Drummond, acrescenta ao tema social seu desencanto, seu pessimismo. Sabia da Guerra; morava no Rio e via como o Brasil ansiava por sair do Estado Novo e queria um regime democrático.

Todas essas questões, é claro, intervieram nas criações. E, em muitos de seus poemas deste livro, Drummond confessa a impotência da poesia só para criar beleza. Havia um inconformismo dos artistas com a crueldade que se via no mundo em geral, e uma pergunta que o mineiro Drummond nunca deixou de se fazer: para que serve a poesia?


No poema "Carta a Stalingrado", (cidade em que os
soviéticos vencem os alemães) diz Drummond que a poesia foi parar nos jornais:

“Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades.
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
Outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
 e o hálito selvagem da liberdade 
dilata os seus peitos(...)

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.”


A palavra poética

 

Telegramas são notícias da guerra. Homero é o autor das epopeias "Ilíada" e "Odisseia", poemas épicos e heroicos por excelência. Drummond nos diz de forma tão simples quanto o mundo mudou. A temática engajada política e socialmente está sempre presente no livro. Mas há outra, muito forte: usemos a palavra poética; é claro que, apesar de tudo, devemos fazer poesia, pensa o poeta.

E essa poesia urbana, de um poeta "antenado" deve sair modernista, ou seja, sem que nenhuma tradição a atrapalhe, sem rimas, sem estrofes, sem o cheiro do que é antigo. A força da "palavra poética" (apesar da dúvida sobre sua utililidade) é um dos temas mais caros ao poeta. No primeiro (e mais famoso) poema do livro, "Consideração do poema", o poeta diz:

“Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
São puras, largas, autênticas, indevassáveis. 

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
(...)

 

Participação e desencanto

 

Predomina no conjunto dos poemas uma dualidade: de um lado devemos participar politicamente da vida; de outro, só é possível ter uma visão triste e desencantada da vida. Seria a esperança contra o pessimismo? As duas coisas, provavelmente, dizem os leitores do poeta. O fato é que, diferentemente do humor de outros livros, nestes poemas CDA tem um tom solene, grave e triste. Vejamos um trecho de outro famoso poema, "Procura da poesia":

“Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não 
                                                                                       [contam. (...)”

Ou então, vejamos como o poeta vê a si mesmo no cotidiano da cidade, em outro famoso poema: "A flor e a náusea":

“Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me? (...)”


Metalinguagem

 

A poesia sobre a propria poesia (a que chamamos poesia metalinguística) comparece todo o tempo neste livro. Mas há também a virtude de se refletir sobre um passado (romântico), quando o mundo era mais organizado e talvez mais feliz. É o que diz o poeta, quando cria a "Nova canção do exílio", paródia e homenagem a Gonçalves Dias:

“Um sabiá
Na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.”(...)

O fato é que o poeta, que desde o início de sua poesia dizia "Vai Carlos, ser gauche na vida!"(Poema de sete faces, 1922) continua, aos quarenta anos, a sentir-se sozinho, como homem, como poeta. Ele nos diz no poema "América":

“Sou apenas um homem.
Um homem pequenino à beira de um rio.
Vejo as águar que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.”(...)

E como é grande a saudade dos amigos, que CDA sempre celebrou em tantos poemas. Em 1945 morre o grande amigo Mário de Andrade. Drummond lhe dedica o longo poema "Mário de Andrade desce aos infernos", que começa desta maneira:

“Daqui a vinte anos farei teu poema
e te cantarei com tal suspiro
que as flores pasmarão, e as abelha,
confundidas, esvairão seu mel. 

Daqui a vinte anos: poderei
Tanto esperar o preço da poesia?”(...)


Existencialismo

 

Passariam não vinte, mas quarenta anos mais de poesia drummoniana. Os temas sociais tratados em "A Rosa do Povo" abrandaram; o que nunca abrandou depois foram as perguntas que o poeta se faz sobre si mesmo neste mundo; a isso chamamos existencialismo, que também faz parte integrante deste livro.

Dos poemas de "A Rosa do Povo" não se pode deixar de ler os que aqui estão assinalados e mais alguns, como "O Medo", "Áporo", "Anúncio da Rosa" "Resíduo", "O Elefante" "Carta ao Homem do Povo Charles Chaplin e o famoso "Morte do Leiteiro".


O fato é que uma flor sempre nasce, e vai aqui o que para ela deseja o poeta:
 
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
(...)

É feia. Mas é realmente uma flor.

                                                   A Flor e a Náusea         

*Márcia Lígia Guidin é professora universitária de literatura, autora de "Armário de Vidro - Velhice em Machado de Assis", e dirige a Miró Editorial.

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