Em novembro de 1946, num artigo para a Revista Acadêmica, o poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade fez uma rara avaliação a respeito de sua atividade como tradutor, quase como se pedisse desculpas pela ousadia. No artigo, impregnado de um lirismo típico do mais carioca dos poetas mineiros, Drummond descrevia o trabalho de passar para o português o romance As relações perigosas, do general francês Choderlos de Laclos:
“O gosto do livro despertou em mim o apetite de traduzi-lo. Nunca fui amante de traduções: por falta de habilitação e de paciência. É esse ofício de traduzir, alguma coisa como a navegação por mares nevoentos, em que você tanto pode salvar-se como topar com um recife, a proa de outro barco, o peixe-fantasma, a mina flutuante e o raio. Às vezes imaginamos que estamos traduzindo e estamos simplesmente falsificando: culpa da cerração no mar de línguas, senão da própria irredutibilidade do texto literário.(...) Traduzi com grandes pausas, como se deve beber cachaça, e se não estou satisfeito com o meu trabalho, confesso que dele tirei prazer.”
Engana-se quem pensa que esse tradutor envergonhado seja acidental ou circunstancial, espécie de hobby de um gigante poeta, cronista e romancista. Longe disso. Usando às vezes pseudônimos, às vezes o próprio nome, Drummond traduziu muito — não apenas prosa e teatro, como As relações perigosas — mas especialmente poetas que acabaram influenciando decisivamente sua própria obra, como Federico García Lorca, Pedro Salinas, Juan Jamón Jiménez, André Verdet, Guillaume Apollinaire ou Jules Supervielle. É o que se conclui de um dos mais importantes lançamentos literários do ano: o livro Poesia traduzida, que a editora Cosac Naify manda para as livrarias esta semana.
Fruto de um trabalho de organização e pesquisa de cerca de cinco anos do editor e professor de Literatura Brasileira da USP Augusto Massi e do poeta, tradutor e pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa Júlio Castañon Guimarães, Poesia traduzida traz 64 poemas (em cuidada edição bilíngue) publicados em jornais e revistas brasileiros da primeira metade do século XX e traduzidos a partir do francês, espanhol e inglês. Estão ali pérolas em versos de dezenas de poetas do calibre de Paul Éluard, Ralph Waldo Emerson, Dorothy Parker, Jacques Prévert, Fernando de Córdoba y Bocanegra, Bertolt Brecht, além dos já citados Lorca, Jiménez, Salinas e Verdet.
"Além das afinidades literárias entre Drummond e os poetas, havia uma preocupação política comum entre alguns desses escritores, e vários versos foram traduzidos no contexto da Segunda Guerra, das lutas antifascistas das décadas de 1930 e 40 e das perplexidades do pós-guerra", diz Massi, idealizador do projeto de pesquisar o trabalho de poesia traduzida pelo escritor mineiro. "Muitas traduções foram feitas com pseudônimos dentro desse espírito político, e como o próprio Drummond se considerava ′tradutor bissexto`, apesar de algumas vezes fazer e refazer traduções até achar a palavra ideal, essa faceta do poeta nunca foi propriamente estudada".
"É bom lembrar que Drummond traduziu também vários livros de prosa de ficção, peças de teatro e até um estudo sobre pássaros", diz Júlio Castañon Guimarães. "Era, portanto, um tradutor muito experiente, o que, somado ao fato de ele ser o escritor que era e à sua cultura literária, faz de suas traduções de poesia um trabalho de grande importância. Um ótimo exemplo são as versões que fez de poemas de Apollinaire, versos excepcionais e de grande dificuldade de tradução. O próprio Drummond havia pensado em reunir suas traduções de poesia, e chegou a ser anunciado, nos anos 1950, um volume com esses trabalhos. Não se sabe por qual razão o livro não foi publicado".
Há alguns versos especiais em Poesia traduzida, como o enorme poema Um único pensamento (Liberté), de Paul Éluard, traduzido a quatro mãos com o também poeta Manuel Bandeira. Ou a tradução de Erich Kästner feita com a ajuda de Otto Maria Carpeaux.
Além dos versos, Poesia traduzida brilha também nas páginas em que os pesquisadores explicam a faceta de tradutor de Drummond, suas influências e a forma como encarava, afinal, sua tarefa — sempre amorosamente: “As palavras não são apenas símbolos de coisas, são também coisas elas próprias, com a forma, a cor, a densidade, o peso, a essência peculiar a cada qual. O tradutor tenta o milagre de encontrar, em duas línguas, palavras-coisas que se correspondam exatamente. Não há. Muitas aproximações, entretanto, são felizes: nesse caso, o tradutor do poema escreveu um novo poema. Louvemos, por isso mesmo, os tradutores. Dentro da condição terrestre das ilhas vocabulares, eles fazem o que podem.”
Fonte: Site do Diário de Pernambuco
Fonte: Site do Diário de Pernambuco
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